VARIAÇÕES SOBRE O FUNDAMENTALISMO

  

                                             Dentre as páginas dedicadas ao problema do fundamentalismo nenhuma me agradou mais que a escrita, em abril, para o terceiro fascículo trimestral da Revista Brasileira de Filosofia do corrente ano, pelo jovem pensador colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, felizmente integrado em nossa vida universitária. Não somente soube ele sintetizar os elementos caracterizadores dessa questão como revelou impressionante antevisão dos atos de terror que atingiram o World Trade Center e o Pentágono, no nunca esquecido 11 de setembro que assinalou nova fase na história contemporânea.

                                             O tópico nuclear do mencionado artigo é longo, mas vale a pena transcrevê-lo: “Não há dúvida, escreve ele, que o fundamentalismo será uma das causas mais relevantes de conflitos contra o convívio democrático e o desenvolvimento no século XXI. A essência dele é esta: só é aceita a forma purista de opção religiosa adotada pelos membros da seita radical; qualquer opção diferente deve ser aniquilada sem contemplações, pois é considerada um pecado imperdoável. No caso dos fundamentalistas islâmicos, a saída é a eliminação de quem se opuser, no seio do país, ao seu domínio absoluto. Isso aconteceu no Irã dos Aiatolás, no totalitarismo fundamentalista dos Talibãs no Afeganistão, ou no terrorismo deflagrado pelos xiitas no Oriente Médio e na Argélia. No caso dos suicídios coletivos apregoados por seitas radicais, a auto-eliminação dos membros do grupo trata de impedir a sua contaminação com um mundo irremediavelmente perdido. Para o fundamentalista só pode haver uma democracia válida: a da unanimidade ao redor do mesmo credo. Democracia pluralista é, portanto, uma condição inaceitável”.

                                             Como que prevendo as tragédias de Nova Iorque e Washington, Vélez Rodríguez lembra uma série de “atos terroristas praticados pelo mundo afora, ao longo da última década, como, por exemplo, o atentado de Oklahoma, nos Estados Unidos, perpetrado por extremistas wasp e que causou inúmeras vítimas civis; o atentado contra a sede da Sociedade Israelita em Buenos Aires, praticado por mulçumanos radicais; os suicídios coletivos patrocinados nos Estados Unidos e em países europeus por seitas milenaristas; os atentados contra embaixadas americanas na África, ao longo de 1998, de autoria intelectual do fanático Bin Laden; os vários atentados praticados na França pelos ativistas mulçumanos da GIA; os atos terroristas deflagrados na Argélia contra a população civil pelos fundamentalistas islâmicos; o terrorismo dos fanáticos Talibãs, de que é vítima a população do Afeganistão; a onda terrorista que sacudiu Moscou, patrocinada pelos nacionalistas chechenos,” etc.

                                             Melhor não se poderia situar a questão, mostrando a universalidade do fenômeno, que pode ter tanto um fundamento religioso como político, todas as modalidades, em suma, de fanatismo que podem perverter e subverter as mais diversas formas de manifestações coletivas.

                                             É claro que nenhuma delas é tão radical e apavorante como a de fundo religioso, quando o crente deixa de ser humilde e temeroso intérprete da vontade divina, convertendo-se em orgulhoso e exclusivo mensageiro dos desígnios de Deus, com poderes para impor aos demais o que ele pensa e quer, sendo legitimados todos os seus modos de agir, por mais atrozes e bárbaros que sejam.

                                             A chamada “experiência religiosa” é, na realidade, uma “ante-experiência”, uma vez que quem faz uma prece a Deus de antemão reconhece a sua transcendência, ou seja, a própria e absoluta subordinação a um Valor Absoluto, inatingível pelas simples vias da razão. Daí duas conseqüências essenciais: a tolerância para os que não têm a graça de crer; e a igualdade entre todas as formas de crenças.

                                             Quando, ao contrário, nos consideramos donos da verdade transcendente e nos arrogamos a prerrogativa de impor aos demais o que nos parece certo, a pretexto de estarmos cuidando altruisticamente de sua salvação, está aberta a porta do fundamentalismo, ficando adrede justificados todos os abusos e desmandos.

                                             É nas épocas, como a nossa, em que campeia o fanatismo, que devemos cultivar a tolerância como um valor fundamental, sob pena de nos tornarmos vítimas do que condenamos.

                                             É por essa razão que não concordo com aqueles que, na atual conjuntura, afirmam que haveria um “contraste de civilizações”,  notadamente um conflito de valores entre a cultura ocidental e a islâmica. Nada mais errôneo e perigoso do que considerar o fundamentalismo um mal cogênito da religião maometana, esquecendo-se, primeiro, que o Corão é um repertório magnífico de imperativos éticos; em segundo lugar, que, nesses dois milênios de civilização cristã, esta já teve momentos marcados pelos mais odiosos fanatismos, com sacrifício de milhões de pessoas, cuja única falta consistia apenas na diferença de raça ou de crença.

                                             Por tais razões, a luta contra o terrorismo não pode ser deixada a critério exclusivo de líderes políticos, por mais poderosas que sejam as nações que dirigem. Se o fenômeno é universal, nada mais natural que haja a universalidade do consenso a respeito da extensão do conflito e dos meios a serem empregados.

                                             Não creio se possa negar solidariedade aos Estados Unidos da América ao declararem guerra ao País que deu guarida às forças responsáveis pelos atos de terror que tão duramente os atingiram, mas tal atitude não importa em uma solidariedade incondicional, isto é, ditada unilateralmente, sem a prévia audiência da comunidade internacional.

                                             Uma das principais conseqüências do 11 de setembro foi o renascimento imprevisto do Poder Nacional, expressão imediata do  Estado Nacional que parecia comprometido pelo processo de globalização, mas isto não significa o primado de qualquer deles, pois, mais do que nunca se impõe o respeito ao princípio da “igualdade das soberanias”, que Rui Barbosa mais do que ninguém soube proclamar.

                                             Finalmente, por mais que a reação ao terrorismo implique medidas de exceção, não é admissível a criação de tribunais militares secretos para julgamento dos réus acusados desse crime, recusando-se-lhes pleno direito de defesa, com todas as garantias próprias do regime democrático e do Estado de Direito. O princípio do “devido processo legal” e do “contraditório e ampla defesa” acham-se consagrados no Art. 5o da Constituição de 1988, condicionando a atitude do Brasil no plano das relações internacionais, com exclusão de qualquer tribunal de exceção como aquele desejado pelo Presidente George Bush.

 

                                                                                              08.12.01